Resumo: O artigo aborda gaslighting, um abuso psicológico de gênero, sutil e perverso, sob a luz do tratamento legal conferido a esta violência pela Lei Maria da Penha, que possibilita às vítimas o manejo de inúmeros instrumentos de proteção e defesa.

“Apenas porque eles não batem em você não significa que não é abuso.
Você não pensaria que é um crime olhar para o céu bem alto à noite & dizer às estrelas que elas não têm nenhum brilho?
Advinhe?
Você brilha muito mais do que todas as estrelas que já existiram ou que existirão.”
(LOVELACE, 2017)

Gaslighting. O nome, por si, não revela o conteúdo abominável desta prática que encontra no ambiente familiar um terreno fértil.
O nome vem do filme Gaslight (À Meia Luz).(1)
Na trama, o marido manipula sua mulher com sutileza até convencê-la de que ela imagina coisas, de que tem lembranças distorcidas das discussões e até a faz duvidar de sua própria sensatez.
Trata-se de um abuso machista.

O gaslighting é uma violência sutil e manipuladora, praticada na clandestinidade da relação íntima, através da qual o agressor age de forma repetida para desgastar a autoestima e a confiança da mulher, menosprezando suas opiniões e gostos, destruindo sua autoimagem positiva, anulando seus desejos próprios e enchendo-a de medo e dúvidas sobre si, seu valor, suas capacidades pessoais e até sua sanidade.

“Você está paranoica”, “você é exagerada”, “você inventa isso na sua cabeça”, “você não sabe o que está falando”, “você só diz bobagens”, “você não serve mesmo pra nada”, “você deveria estar agradecida a mim”, eles dizem. E repetem muitas e muitas vezes.
De forma bastante cruel, a vítima vai se deixando abusar, pois não tem consciência de que está sendo violentada psicologicamente(2), e passa a podar seus próprios atos para não desapontar ou desagradar o algoz.
A violência vem quase sempre disfarçada de bom mocismo, vitimismo, opinião, conselho ou dica, ocasiões em que o agressor tem como pretexto unicamente “fazer o bem”, “ajudar”. E, como em outras formas de violência, o abusador oscila entre ataques e afetos.

Vale dizer que o gaslighting é difícil de ser compreendido.
Isso se dá porque não há uma agressão física ou um crime contra a honra propriamente dito(3), mas há o ataque à dignidade da mulher.
Muitas vezes, também, o agressor é extremamente gentil e amistoso com os amigos e familiares, que então classificam as queixas da vítima de “exagero”, “problemas de todo casal” ou fruto de sensibilidade exacerbada.
Além disso, após tempos de abuso, a própria vítima (convencida de que não tem valor algum) se isola de amigos e familiares, o que agrava o cenário de devastação psicológica.

Perante as autoridades policiais e judiciais há também dificuldade de caracterizar o abuso psicológico.
Primeiro, porque frequentemente não há provas físicas (cartas, e-mails, mensagens, gravações de áudio e vídeo, por exemplo).
E, em segundo lugar, porque a vítima que busca ajuda já chega fragilizada e, não raro, não recebe o acolhimento necessário para narrar com segurança e detalhes todas as afrontas que sofreu ao longo da relação.
A violência psicológica de gênero sofrida no ambiente familiar encontra, então, os obstáculos e entraves que ainda precisam ser superados fora do lar, e a vítima há de ser extremamente corajosa para prosseguir buscando justiça para si.

A Lei Maria da Penha foi instrumento fundamental para que o debate sobre o gaslighting viesse à tona.
Já no início do diploma legal, o artigo 2º, que diz dos direitos inerentes à pessoa humana da mulher, menciona, dentre eles, o de ter asseguradas as oportunidades e facilidades para preservar sua saúde mental.
Quando o art. 5º traz, por sua vez, a configuração da violência doméstica e familiar, aponta qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause à mulher, dentre outros danos, sofrimento psicológico.
Mais enfático, o art. 7º, em seu inciso II, ao enumerar as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, aponta a violência psicológica, definindo-a como “qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação”.

Assim, é cristalino que a Lei Maria da Penha, com seus mecanismos de proteção à mulher e repressão à violência, poderá ser manejada integralmente nos casos de violência psicológica ou emocional, mais precisamente, no gaslighting.
Não só poderá, como deverá ser utilizada , visto que o gaslighting é um câncer social que precisa ser combatido com veemência.
Os valores patriarcais que contribuíram historicamente para excluir a mulher da categoria de sujeito de direito, infelizmente, ainda vigem no corpo social.
Principalmente no âmbito doméstico, frustações de toda a ordem vêm à tona e o machismo arraigado acaba por encontrar naquela fêmea disponível uma presa fácil.
É preciso, pois, trabalhar os mecanismos da Lei Maria da Penha também para sensibilizar a população através de campanhas e programas de atendimento, formar os profissionais que atendem às vítimas, não só no âmbito policial e judicial, mas também no âmbito médico.
Desta forma, as vítimas poderão ser acompanhadas, auxiliadas no processo de construção de seus dolorosos relatos, acreditadas, acolhidas, e, sobretudo, poderão buscar retomar a liberdade primordial que lhes foi roubada, ou seja, poderão se empoderar.

Empoderar significa fortalecer, dar condições para o surgimento e a manutenção da autoconfiança, propiciar o crescimento.
Desse contexto surge o empoderamento feminino, que deve ser palavra de ordem em todos os recônditos.
Precisamente diante do gaslighting, o empoderamento feminino é fundamental para que as mulheres em situação de violência psicológica consigam se auto perceber nessa condição, para que tenham conhecimento dos seus direitos, para que reúnam forças para o enfrentamento desse caos, e para que, um dia, mulher alguma seja emocionalmente violentada.

Notas:

  1. Gaslight, 1944, EUA.
  2. Muitas vítimas só adquirem a consciência do abuso quando buscam ajuda para lidar com as consequências dele, como, por exemplo, apatia, perda ou ganho de apetite, depressão, síndrome do pânico, etc., ou quando a violência psicológica se faz acompanhar, finalmente, pela violência física.
  3. Injúria, calúnia e difamação são crimes contra a honra.
    Injúria é qualquer ofensa à dignidade de alguém. O fato pode ser um xingamento qualquer e é a própria vítima é quem toma conhecimento.
    Calúnia é a imputação falsa de um fato criminoso a alguém. O fato tem que ser um crime; o mencionado “crime” tem que ser falso; e terceiros têm que ficar sabendo do que foi dito.
    Difamação é a imputação de um fato ofensivo à reputação de alguém. O fato deve ser ofensivo à reputação e terceiros têm que ficar sabendo do que foi dito.


Referências:

CARRETERO, Nacho. “Como esse cara me convenceu de que eu era tonta?”: o abuso machista que ninguém parece ver”. El País, 22nov2017. Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/15/internacional/1505472042_655999.html. Acesso em 16/07/2018.

DURAN, Paula. “Injúria, calúnia e difamação – você sabe a diferença?”. CP Advogadas, 03abr2017. Disponível em https://cpadvogadas.com.br/injuria-calunia-e-difamacao-voce-sabe-a-diferenca/. Acesso em 16/07/2018.

LOVELACE, Amanda. A princesa salva a si mesma neste livro. Tradução de Izabel Aleixo. Rio de Janeiro: LeYa, 2017.

VITANGELO, Maria Tereza. A violência psicológica contra as mulheres e o empoderamento feminino como forma de quebrar as barreiras da discriminação de gêneros. Migalhas, 08mar2018. Disponível em http://www.migalhas. com.br/dePeso/16, MI275773,61044-A+violencia+psicológica+contra+as+ mulheres+e+o+empoderamento+feminino. Acesso em 16/07/2018.

Este texto foi publicado originalmente no E-book Femijuris “Violência Doméstica – 12 anos da lei Maria da Penha”.